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Crônicas de viagem: “tu vais fazer um relato sobre um outro cotidiano"

É só procurar o nome de Airton Ortiz no Google que logo percebemos o quanto viajar faz parte da vida dele. E escrever sobre também. Nova Iorque, Paris, Ãfrica, Ãndia, Londres, HavanaÂ… esses são alguns dos destinos que aparecem na capa de seus livros.

Criador do gênero Jornalismo de Aventura, Ortiz tem no currículo 17 livros publicados, sendo 10 de reportagem, quatro de crônicas, dois romances e um de fotografia. Foi patrono da 60ª Feira do Livro de POA (2014) e tem prêmios como Açorianos, Prêmio AGES e Prêmio Esso de Jornalismo.

Na entrevista a seguir, Ortiz explica o gênero Jornalismo de Aventura, discorre sobre as peculiaridades de viajar e dá dicas para a escrita de crônicas sobre viagens. Confira:


Luísa Tessuto: Você é considerado o criador do gênero Jornalismo de Aventura. Como você define esse gênero?

Airton Ortiz: Bom, é uma reportagem diferente do convencional em alguns aspectos. Primeiro, é uma reportagem na primeira pessoa, o que não é comum. Segundo, é uma reportagem que procura passar mais emoção do que informação. Porque eu acho que a informação pontual as pessoas vão buscar cada vez mais na internet. Quem abre um livro para ler duzentas, trezentas páginas, quer muito mais uma leitura que o/a emocione com beleza estética, algo que ele/a sinta prazer em ler, do que a informação pontual propriamente dita. Então nas minhas reportagens eu procuro passar mais a emoção do que a informação. E dou mais importância para os aspectos culturais do que para os aspectos técnicos. Por exemplo: eu escalei o monte Kilimanjaro, a montanha mais alta da Ãfrica, e contei essa história num livro de quase trezentas páginas. O Kilimanjaro, segundo os geólogos, é um vulcão adormecido que se formou ao longo do tempo com a lava que saiu. E ele tem ao lado um vulcão menor, em que na último explosão, um lado dele desbeiçou e caiu todo, então ele não tem cume regular, não tem uma cratera regular. Os geólogos explicam do ponto de vista das erupções vulcânicas. A tribo que mora na encosta da montanha diz que aquele vulcão menor tem a cratera desfeita porque levou uma bordoada do outro vulcão que era maior, que se indignou porque o fogo dele apagou antes, deu uma burlada e ficou assim. Então, na minha reportagem, eu prefiro a versão da tribo local, a versão da lenda, da cultura, do que a versão técnica, porque a versão técnica qualquer um vai buscar no Google. É esse tipo de reportagem que eu faço, procurando muito mais a alegria de ler do que propriamente aquela informaçãozinha pontual. É diferente de jornalismo subjetivo porque eu não falo de mim e nem descrevo o lugar onde vou. Eu falo da minha interatividade com as culturas por onde eu vou passando. Não é biografia, e também não é uma reportagem que simplesmente descreve as coisas que estão lá. O jornalismo de aventura é uma reportagem onde o repórter é repórter e protagonista da reportagem.

Luísa: Você também escreve crônicas de viagem, certo? Quando você viaja, aproveita sem pensar na escrita que vai vir depois, ou ela é uma lembrança constante?

Airton: Sim. Durante as viagens eu faço um diário com tudo que acontece durante cada dia. Anoto ali tópicos que me chamaram a atenção e, depois, quando eu volto, desenvolvo aqueles tópicos criando um texto mais literário, porque a crônica tem uma diferença da reportagem. A reportagem é um gênero que informa com precisão. Por exemplo, se eu quero dizer que o almoço custou 80 reais, na reportagem eu vou dizer: “o almoço custou 80 reais”. 80 reais é 80 reais para qualquer pessoa que lê a reportagem. A crônica é uma linguagem mais sutil, mais literária, ela permite mais a participação do leitor. Então, se a reportagem informa, a crônica sugere. Então na crônica eu não vou dizer “o almoço custou 80 reais”, eu vou dizer: “o almoço custou caro”, e cada leitor dá o preço para esse almoço de acordo com a experiência dele, ele participa mais. A informação não é tão importante [na crônica], mais importante que a informação é a construção do texto, é a linguagem. A crônica tem que ser uma conversa ao pé da página, assim como tem a conversa ao pé do rádio. É uma conversa totalmente informal entre o autor e o leitor com um texto que seja saboroso de ler.

Luísa: É possível escrever sobre viagens consideradas pequenas (de pouca distância ou pouco tempo)?

Airton: Independe da distância ou do tempo. “Por que a gente viaja?”, as pessoas me perguntam. “Tu vais lá em busca do que? Em busca de que tipo de conhecimento?” A gente viaja em busca de nós mesmos. A viagem física, que faz tu ir em determinado lugar, é um pretexto para provocar a principal viagem, que é a viagem interior. A viagem interior é mais importante. Quando tu vais para um lugar que muda tua rotina, isso te provoca um certo estranhamento, te leva a uma certa reflexão sobre as coisas diferentes que tu estás vendo, e as tuas atitudes diante dessa nova realidade vão te revelar uma pessoa que não te revelaria se tu ficasse em casa parado. Então toda viagem é uma viagem em busca de nós mesmos. Toda viagem busca o autoconhecimento. A viagem externa é um pretexto.

Quanto mais diferente for a realidade para onde eu vou, maior é esse estranhamento, maior é a reflexão que me provoca e melhor é a observação que eu posso fazer em relação a mim mesmo. Quanto menor é esse estranhamento, claro que menor é essa reflexão. Então, se eu vou para o outro lado do mundo, Nova Iorque, Londres ou para China, e eu fico só na piscina do hotel, é a mesma coisa que eu ficar na piscina do hotel aqui. A gente viaja atrás daquilo que só tem naquele lugar. Então se tu fores para uma pequena localidade no interior, e tu encontrares lá algo que só tem lá, aquilo vai desencadear todo um processo de reflexão para tu escrever sobre isso. A importância da viagem é o máximo que ela nos afasta da nossa rotina. Pode ser lá no outro lado do planeta ou pode se dar no outro lado da rua.

Luísa: Quais são as coisas mais importantes para se reparar durante a viagem que podem virar um bom texto? A cultura do local? Os imprevistos? O sentimento do viajante? Ou tudo?

Airton: Tudo isso junto. É muito importante que, quando a gente viaje, como vamos entrar em contato com outra realidade, a gente esteja com a mente bem aberta para compreender o diferente antes de querer julgar, porque se eu entro em uma outra cultura que é diferente da minha, eu tenho que usar parâmetros diferentes para entender aquela cultura do que os que eu uso para entender a minha cultura. É importante que a gente esteja aberto para tudo isso. E, se eu estiver aberto para tudo isso, as coisas que vão acontecendo de improviso são as mais saborosas para a gente escrever sobre. É importante que a gente esteja de mente e coração abertos quando entramos em contato com outra realidade, para observar tudo.

O cara que mora na cidade dele passa cem vezes na mesma rua, em frente ao mesmo prédio, e não nota as nuances desse prédio. Quando a gente está em uma outra cidade que não é a nossa, a gente vai procurando as pequenas diferenças que tem, por isso que o olhar do estrangeiro é tão importante, às vezes até mais importante, do que o olhar do nativo sobre a mesma coisa. Porque a gente percebe coisas que não fazem parte da nossa rotina. Se tu vais todo dia no centro, tu vês sempre os mesmos prédios, aquilo ali cria uma rotina que daqui a pouco tu não vais notar nada de especial ali. O cara que chega de fora nota o que tem de especial.

Luísa: Qual é a maior dificuldade de se escrever sobre viagens, visto que a crônica é vista como um relato do cotidiano?

Airton: Tu vais fazer um relato sobre um outro cotidiano. Por isso que é importante a gente entrar na outra realidade. Eu não posso escrever uma crônica sobre Nova Iorque a partir das referências que eu tenho aqui. Vai sair uma coisa desfocada. Agora, se eu entrar na realidade de lá, e eu conseguir captar aquela realidade, transformar em texto escrito e levar para o meu leitor, ele vai ter algo totalmente surpreendente, que vai fugir da rotina dele. Isso é o que deixa o texto saboroso.

Luísa: Qual a dica que você dá para quem quer começar a escrever crônicas sobre viagens?

Airton: Ler bastante. É impossível alguém escrever sem ler muito antes. É a mesma coisa querer que o jogador de futebol jogue no domingo sem ter treinado durante a semana, isso não existe. Se tu pega o Cristiano Ronaldo, o Messi, e tantos outros, os caras treinam a semana inteira para jogar domingo. Por que eu vou querer escrever a crônica sem ter antes me preparado para isso? Tem que ler, ler, ler. É ponto de partida. Ninguém consegue escrever nada se não for um bom leitor.

Cada um tem que encontrar o seu prato favorito. Gosto não se discute. Na literatura também. Tem gente que adora um texto mais complexo, tem gente que adora um texto mais simples, tem gente que adora o cara que escreve dez páginas e não diz nada, tem gente que quer que o cara na terceira linha já esteja dizendo alguma coisa. É importante que cada um encontre o que gosta de ler, sem preconceito. Pode ser bula de remédio. “Ai, adoro ler bula de remédio”. Então vai ler bula de remédio! O texto bom é aquele que tu gosta. É que nem vinho. Qual é o vinho bom? Um que custou 200 reais? 50? 10? O vinho bom é aquele que tu gosta, independe do preço. Não pode ter preconceito com leitura. Tem ser aquela que a gente gosta e lê com prazer, com alegria, com satisfação.

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Airton Ortiz

 

 

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